28.10.2015 / Histórias Inspiradoras
Não deixe a gentileza acabar

Meu filho número dois há algum tempo virou para mim e disse com todas as letras que o cavalheirismo havia acabado. Eu fiquei surpreso com aquela frase dita por um menino com então apenas 9 anos. Tudo porque minutos antes, ao entrar no carro, ele, mais o meu filho número três, com 7 anos, mais a Vitória, a amiga que também tinha 9, quase saíram no tapa porque todos queriam viajar ao lado da janela.

—  Deixem a Vitória ir na janela hoje. Sejam cavalheiros  —  eu disse, tentando resolver a crise dos pequenos.

—  Papai, o cavalheirismo acabou.

Não faz muito tempo, minha ex-mulher reclamava que eu nunca abria a porta do carro para ela entrar, nem a esperava sair do elevador. Não sei se pelo fato de sempre termos sido amigos muito antes de namorarmos e entre nós nunca ter havido muita cerimônia, o certo é que não sou mesmo aquilo que se pode chamar de cavalheiro.

Sou meio desligado, só isso.

Eu demorei alguns segundos para processar a informação que eu acabara de receber do meu filho. Quando eu poderia imaginar que um menino de apenas 9 anos pudesse ser tão claro, direto e objetivo ao decretar o fim de uma regra tão básica de educação e bons modos?

Ele ainda completou seu raciocínio dizendo que as mulheres hoje em dia são que nem os homens. Que elas trabalham, ganham dinheiro e não sabem fazer comida:

—  Que nem a mamãe.

Vitória, a única representante do sexo feminino naquele carro, concordava com tudo e ainda tinha lá seus argumentos, o que me fez ter a certeza de que aquela geração era mesmo diferente. O que cada uma daquelas crianças dizia tinha fundamento. Não eram frases soltas, como se repetissem o que ouviram há pouco. Não. As ideias se complementavam independentemente do sexo e era como se não houvesse mesmo diferença alguma entre meninos e meninas. Eu não tive outra opção a não ser em concordar com o fim do cavalheirismo.

Não sem antes fazer com que eles prometessem que nunca vão deixar a gentileza acabar.

—  A gentileza é o cavalheirismo que não depende de gênero feminino ou masculino, eu pensei naquele exato instante.

Se as mulheres há muito vêm ocupando um espaço que até então era dos homens, os homens, por sua vez, já começaram a invadir o terreno das mulheres. Tenho cá minhas desconfianças de que seja mais por instinto de sobrevivência—  da espécie, do casal e do relacionamento —  do que propriamente por vontade própria que boa parte dos homens vai para a cozinha lavar a louça do jantar, por exemplo. Hoje, o tão discutido sexo frágil só dá sinais de fragilidade quando lhe convém ou quando precisa encarar um vidro de palmitos ou de azeitonas.

—  Não tenho força, elas dizem.

Minha mãe sempre teve uma postura que me parecia submissa. Era dona de casa, sabia cozinhar, fazia bolos que deixavam a vizinhança com água na boca e acreditava em tudo o que meu pai dizia. Hoje ela não faz mais bolos, quase não cozinha e a casa, boa parte da semana fica sob minha responsabilidade ou sob a responsabilidade do meu pai, em quem ela ainda acredita em tudo o que fala.

Tenho minhas desconfianças de que o jeito manso da minha mãe talvez fosse só um disfarce.

Na verdade, acho que minha mãe é forte pra caramba.

Meu pai tem cara de poucos amigos, daqueles que gostam de alimentar fama de durão. É macho alfa, autoritário e muitas vezes tentou fazer da nossa casa uma extensão dos quartéis que comandava com seus banhos frios, horários e regras.

—  Não pense que está falando com seus soldados, respondia, de igual para igual, a minha mãe.

Volta e meia me pego pensando que este lado coronel do meu pai é só um disfarce para sua enorme fragilidade. O coronel, no fundo, no fundo, é frágil.

Já o vi —  e o fiz —  chorar algumas vezes.

“Homem não chora!” era o que dizia a minha avó quando eu porventura me machucava.

Homem não chorava, isso sim. Assim como não lavava louça, não passava roupa, não arrumava a casa, não botava as crianças para dormir, não cuidava do almoço… ah, vó, o mundo está mesmo muito mudado!

Hoje as mulheres disputam o mercado de trabalho de igual para igual com os homens. São nossas chefes, governam nosso país, fumam, votam, usam calças, saem para beber sozinhas, compram camisinhas, pagam a conta, dão em cima, dizem não, discordam, concordam, amam, odeiam.

Hoje é todo mundo igual, vó. A geração dos seus bisnetos sabe muito bem disso e, entre outras coisas, já deu por encerrado o cavalheirismo.

(Só não deixem a gentileza acabar, eu imploro.)

 

Sobre o autor deste texto, especial para Eu Vejo Beleza:

Marcio Allemand é jornalista, roteirista, poeta e anda meio perdido por aí. Mas ainda acredita na gentileza.