17.10.2015 / Histórias Inspiradoras
O sabor do caramelo

O quarto do hospital era todo bege. Lembro de ter pensado: é creme, caramelo, café com leite – com certeza eram evocações a comfort food, a comida que nos reconforta. Mas a cor era mesmo o impessoal bege, nem frio nem quente; os móveis sem graça, de plástico, metal e fórmica. A cama equipada e gradeada dominando o ambiente, as janelas lacradas. Eu estava chegando àquele quarto para a última etapa do tratamento quimioterápico para combater o linfoma não-Hodgkins em recidiva: o autotransplante de medula.

Era janeiro de 2013.

Naquela altura, eu tentava não pensar muito na vida que havia escolhido para mim, e que estava em suspenso. Família, profissão, muitos amigos, um contato constante com a arte, tudo isso que, como o creme e o caramelo na língua, nos reconforta e nos dá segurança para levar o dia a dia. O transplante me obrigaria a uma restrição completa de movimentos, num isolamento total, por quase um mês.

A barreira física, porém, não ia me impedir de dar e receber notícias. Para isso, eu havia criado, uns três meses antes da internação, o blog Diário do Manto. O nome fazia referência ao subtipo do linfoma que eu combatia. Em cada post eu descrevia etapas do tratamento, revelava questões e dificuldades, pesquisava a terminologia e os procedimentos, falava de filmes, discos, livros, seriados, apresentava lembranças, dividia histórias.

A ideia inicial era abrir o canal de comunicação com os que acompanhavam meu tratamento. Aos poucos, fui percebendo que aquele exercício era muito mais do que, digamos, uma mera troca de informações. Cada texto se tornava uma pequena etapa a ser percorrida – e vencida; cada post era um pequenino universo compartilhado com os amigos-leitores. Aquela atividade era extremamente reconfortante, e não apenas por causa do retorno em tantos e tão preciosos comentários. A escrita em si era um exercício de esperança, um olhar para o futuro, uma mobilização.

Muito tempo depois, fui relacionar tudo isso – esse exercício da narrativa- com a cura pela fala da psicanálise. Dã. E com os rituais religiosos, que oferecem narrativas cosmogônicas. E com os filmes, os seriados, os livros, universos que trazem repouso exatamente porque oferecem territórios com limites, bordas onde a gente se segura para atravessar abismos de incertezas. E mais: a narrativa me dava a chance de colocar, simbolicamente, a doença, o tratamento, as mudanças do lado de fora de mim.

Natural que cada um reaja de maneira diferente em momentos de crise. O paciente de câncer, em especial, viu-se por muito tempo envolvido num pacto de silêncio (há, até hoje, quem não pronuncie o nome da doença). Natural também que haja quem prefira não revelar suas agruras para muita gente, é questão de temperamento. Mas minha experiência com o blog naquele momento me confirmou: narrar sua própria história, ou criar narrativas e universos humanos, profundamente humanos, nos leva em direção a uma cura emocional. Sair do isolamento. Dividir. Transformar.

E isso serve para todo mundo, mesmo quem não tenha qualquer intimidade com a escrita. Narre com palavras, com imagens, com música, com tinta, com dança, esporte, nas panelas – vale tudo, desde que você considere aquilo uma história. Crie seu próprio universo com começo, meio e fim para que nele você se localize e se reconforte. Coloque do lado de fora sua dor e sua dúvida. Narre. E o bege se transformará em caramelo.
Ah! Continuo narrando, sempre. E em completa remissão.

3 lea bah ilustração krp (caramelo)

Sobre os autores, especial para o site:
Texto | Luciana Medeiros é jornalista, escritora, editora. Em 2009 e 2012, passou por quimioterapia e transplante de medula para tratar um linfoma de tipo raro. Sente-se incrivelmente sortuda por ter brigado com sucesso, acompanhada por um exército de amigos.
Ilustração | A artista plástica Lea Bah, 34 anos, é meio carioca, meio rosarina. Se formou em arquitetura para projetar casas de baleia. Agora, com suas ilustrações, projeta a imaginação dos outros.