15.12.2015 / Histórias Inspiradoras
A dor de cada dia

Ultimamente ela tem chegado no fim do ano. O pescoço trava como um torcicolo, o nariz entope e o olho esquerdo começa a lacrimejar e pulsar vagarosamente, sempre do mesmo jeito. Por isso, eu sempre sei quando ela virá. É como escutar o galope ao longe e saber que o cavalo está vindo. E, quando chega, é cavalar mesmo, como um coice. Egoísta e possessiva, toma toda a minha atenção antes, durante e depois que chega. Tirei os sisos por causa dela. Fiz tratamento de ATM por causa dela. Coloquei aparelho por causa dela. Uso óculos também por ela. Reiki, orações, homeopatia… Ela me demanda tempo desde os 17 anos, quando ela começou a me visitar.

Descobri que ela tinha nome apenas dez anos depois e em meu terceiro neurologista. “Cefaleia em Salvas”, me disse ele, mas até hoje prefiro não nomeá-la temendo que ela escute e apareça (como se a penetra crônica precisasse de convite…). A doença é rara e, de acordo com uma pesquisa que fiz no busca-dor, acomete entre 0,07 e 0,27% da população. Viram como eu sou especial?

Os médicos dizem que esta é uma das piores dores que um ser humano pode sentir. Concordo em gênero, número e grau. O meu dentista já escutou relatos de detentos que davam cabeçadas na parede para que ela parasse. E dá vontade mesmo. A sensação é a mesma de quebrar uma noz, mas do ponto de vista da noz. Dá vontade de gemer, gritar, chorar, vomitar e se esconder para que a humanidade não veja o estado de petição de miséria que se fica. Assumo também que, quando a também chamada “dor de cabeça suicida” vem, eu sinto vontade de morrer, mas só um pouquinho. Só se desse para voltar depois. Se existisse cirurgia de mudança de cérebro, eu juro que faria, mas com a condição de que mexessem no “hardware” sem tocar no “software”.

Mesmo que seja apenas em um período do ano, conviver com uma dor aguda que é diária, pontual e burocrática gera uma ansiedade enorme. Todo o seu dia passa a ser programado de forma que, quando ela venha, você possa estar devidamente preparado para que o processo seja o menos pior possível. Como eu disse, ela demanda tempo. E paciência. A lista de eventos e trabalhos postergados é enorme. Minha mulher, meus amigos e familiares podem dizer por mim. Este texto mesmo levou mais tempo para ser feito do que eu imaginava levar.

Hoje, a minha vida se tornou um pouco melhor após o diagnóstico e os remédios mais certamente aplicados. Comparados a uma simples aspirina, eles são caríssimos e geram efeitos colaterais bem específicos (como aquela sensação após uma forte bolada na cara), mas me permitem ter uma qualidade de vida melhor. Posso até dizer que essa doença me tornou mais resiliente com a nossa condição humana e sobre tudo aquilo que a gente acha que tem controle, como o tempo.

Filosoficamente, eu imagino o alvorecer da consciência humana como um macaco, que, certa vez, acordou com uma certa dor de cabeça. Sendo assim, a dor é uma condição inerente à vida. E convenhamos que é só observar a realidade para perceber que existem pessoas que são capazes de viver com dores muito piores do que a minha. Dores da cabeça e do coração.

nuts

“A sensação é a mesma de quebrar uma noz, mas do ponto de vista da noz”

Sobre o autor deste texto, especial para Eu Vejo Beleza:

Gilberto Porcidonio é jornalista, escritor, espirituoso e aprendeu a lidar com a dor

Foto Popsugar / reprodução