19.06.2015 / Crônicas
Sobre não se deixar enferrujar

Cartão inválido. “Cartão inválido, senhora”, falou a caixa da farmácia para uma idosa que estava na minha frente na fila. Ela fez uma expressão de dúvida, olhou para trás e para o lado. “Cartão inválido!”, repetiu a acompanhante dela, quase berrando. E ficou um silêncio, sem nenhuma atitude. Não aguentei: “Passa de novo, nem sempre quando dá cartão inválido está inválido. Pode ser problema na rede”.

A caixa não suportou a intromissão: “Calma, senhora”. “É sua obrigação tentar de novo”, eu disse. A velhinha me olhou, olhou para a acompanhante: “Tem fundo, não está inválido”. E digitou de novo a senha. A caixa, toda feliz: “Continua inválido”. A senhorinha tirou as mãos do andador para catar todo o dinheiro que tinha na carteira, diante da acompanhante muda. Eu respirei fundo.

Muitas vezes, sou tomada por um senso de justiça. Como se baixasse uma Amélie Poulain de Montmartre do filme de mesmo nome. Sinto um desejo enorme de levar ternura para quem precisa, presenteando delicadeza, ajudando a solucionar problemas, vencendo as injustiças. Mas não é só bondade que me move, é um sentimento de raiva também, diante da forma como as coisas acontecem e como as pessoas hoje agem.

Parece-me que quase todos fomos levados, pelas dificuldades que a vida impõe, a desenvolver um sentimento de autodefesa. Como se, aos poucos, tivéssemos nos acostumado a cuidar do que é nosso, a criar uma casca, uma redoma, para que nada nos atingisse, já que nem sempre as coisas dão certo e andam fora de si por aí. Com isso, acabamos agredindo pessoas inocentes. Uma sensação de ter se armado e destinado um fora ao alvo errado. A paciência já era, e esse seria o próximo passo. Nem deu tempo de parar para pensar e disparamos a bomba de autodefesa, repelindo quem, muitas vezes, não tinha nada com isso.

Não acredito que seja o que moveu a caixa da farmácia. Ela estava no ‘default’, falando no automático o que lia no visor da máquina. Mas e se fosse com ela? Ou se fosse a mãe dela? Às vezes, é só uma questão de ser cortês, de querer fazer bem o seu trabalho e não dar aquilo por encerrado. É cumprir o que você foi pago para, é não entregar de qualquer jeito, entender todas as etapas do processo para o qual você foi destinado. Isso não equivale a ser bonzinho e, sim, a ser uma peça funcionando na engrenagem. Peça quebrada atrasa ainda mais o resultado. E se seu objetivo é não perder tempo, o melhor é ser eficiente.