19.06.2015 / Crônicas
Amor na cozinha

Ela temperava os bifinhos de alcatra bem devagar. De um lado: pitada de sal, pimenta do reino e shoyo. Virava as carnes e repetia o procedimento. Na hora de fritar, era com manteiga fervente. Um pouquinho de cada lado. Ia dispondo um a um na travessa. No fim, escorria o caldinho da frigideira sobre os bifes e levava à mesa. O arroz também era feito meticulosamente igual todos os dias, na panela de ferro.

Para a quantidade de arroz, a mesma quantidade visual de água fervente: dois dedos de arroz, dois dedos d’água acima do nível do arroz. Mas não sem antes refogá-lo com cebola batidinha e um dente de alho. O cheiro parecia até de pipoca. E a menina, ali sentada no banquinho todos os dias ao chegar do colégio, ia aprendendo. “Vai, filha, me conta como foi hoje”. Isso foi há muito tempo.

O ímpeto de fazer alguma coisa nova e diferente na cozinha, anos depois, veio com a ideia de festejar o aniversário. “Amor, eu quero inventar moda, fazer cada comidinha com carinho, para as pessoas apreciarem”. E começou a ler livro sobre livro de receitas dos muitos que comprou e foi presenteada. Também mexeu nos cadernos antigos, com a letra ainda no meio termo entre a caligrafia e o garrancho de hoje: “Aqui, olha! Tem a receita de ambrosia da mamãe. Eu mesma anotei ao vivo enquanto ela fazia.

Também tem a do bolo de batata com carne e a do estrogonofe. O segredo era uma dose de conhaque”. Varou a madrugada a virar as páginas com encantamento, até que viu, num dos livros, a rosinha feita com casca de tomate, enfeitando uma salada. É brega? Por quê? É só muito amor. Atire o primeiro ovo quem não se derrete como uma gema mole ao estourá-la em cima do arroz. Sensação equivalente à do Nescau quentinho antes de dormir. Ou do queijo puxa-puxa saindo do pão torrado num dia de depressão.

Os alimentos têm o seu valor, não só para os que têm fome, nem tão somente para os de alma gorda. Cada garfada desperta uma sensação vinda de um dos nossos sentidos: audição (o barulhinho da fritura ou da mordida na batata chips), olfato (o cheiro do bolo quente), paladar (hummm), tato (a sensação dos dedos entre grãos crus de feijão), visão (a cara da comida). Ou a cara feia dela.

No meio de uma briga, o vizinho quis ser agressivo e falou para a mulher: “Você não faz nada direito! Até arroz queima sempre!”. Como não pude deixar de ouvir, pensei… ele está errado de reclamar, afinal, ela não tem obrigação de cozinhar para ele, os tempos são outros. E ela está errada de fazer tudo de qualquer jeito.

Se a sala é o cérebro de uma casa, onde se convive socialmente, a cozinha é o coração. É de lá que saem as melhores histórias, as maiores revelações. Foi lá que a menina, numa crise de riso e de boca cheia, cuspiu o chocolate em cima da mesa de doces finos que a avó preparara para impressionar a amiga; lá que a mocinha falou no ouvido da mãe que estava gostando de outro; que o tio ensinou ao menino como se segurava uma faca; que a tia preparou quentão; que você ficou bêbado; que o casal bateu boca e decidiu o futuro. Onde se riu e se chorou. Foi ou não foi?