19.06.2015 / Crônicas
Morte e vida num domingo

Era um homem discreto. Bethina seria incapaz de reconhecer seu tom de voz fora dos cumprimentos “bom dia” e “boa tarde”. Sabia que era um gênio quando o assunto era computador e que tinha sido um grande mecânico de motos na juventude. Também fumava muito e estava sempre observando, com as duas mãos para trás, como quem está rodeado de itens frágeis, numa sala cheia de cristais. Caminhava assim. Passo a passo… “Larga de ser fofoqueira”, disse Samuel. “É sério, aconteceu alguma coisa. Luzes que nunca foram acesas e vozes que nunca ouvi estão vindo do apartamento”.

Foi à rua e voltou apressada. Havia descoberto tudo. Ele morrera há 15 dias e, antes de partir, como já se considerava velho, apesar de altivo e forte, passou o apartamento para um sobrinho distante, da Zona Norte. Agora, estavam todos ali, arrumando as coisas que ficaram animadamente. “É isso que acontece quando você morre”, falou Bethina.”Todo mundo esvazia logo tudo, mexem nos seus pertences, uma violação. Mas é isso, né? Alguém tem que enfrentar esse processo… Ao mesmo tempo, não dão valor, nem sabem o que significa cada coisa que você tem guardada. Quando eu morrer, vou deixar um testamento. Não vai ser qualquer um que vai ficar com as minhas roupas. Tem que ser quem valorize. E as cartas que já recebi, divididas por pessoas e datas? Bem que eu vi vários computadores na lixeira!” Samuel balbuciou: “Triste, mas é a vida. E você sabe da mãe?”. “Levaram para a casa do outro filho. Ela acabou de fazer 99 anos”. “Coitada”.

Um quadro com pássaros e um leque gigante japonês aguardavam no corredor. Bethina pensou em todos os objetos que junta. Do que valem? São personagens de ‘Toy Story’. Estão para os brinquedos que no filme ganham vida à noite assim como as lembranças do que já viveu e de quem conheceu.

O vizinho de cima será pai em breve e desceu para buscar o berço que haviam entregado. As grades branquinhas, o cortinado, aquele colchão miúdo. O sujeito subia com o símbolo de um nascimento, enquanto que os homens da mudança desciam com móveis antigos e um estrado de cama. Descia a morte e subia a vida, prestes a chegar. Viram a cena e almoçaram em silêncio.