06.11.2015 / Crônicas
A vida com molho, ou o dom do otimismo

Quando as decepções da vida insistem em tomar conta como uma doença indomável, você levanta a cabeça e dá de cara com um canteiro com diversas flores. Nesses dias, nem os buquês vermelhos, as florezinhas brancas de miolo amarelo, azaleias roxas e orquídeas pendendo das árvores o tocam. As pedras portuguesas estão renovadas e limpas. Mas isso também não lhe parece nada demais.

A praça tem uma criança feliz com seu pai, mas o balanço vazio é que chama a sua atenção. Dá vontade de ir nele, mas o parquinho é limitado até certa idade. Não importa que você seja pequeno, tenha uma voz quase infantil, pese pouco e cultive sonhos ingênuos. Não é permitido para crianças grandes. Os olhos quase o embalam ao imaginar o balançar com cabelo ao vento, mas ser adulto o proíbe.

O dia está feio para fechar com um estado de espírito deprimido e, ao checar o celular, uma foto de comida o arrebata. Sem querer se entregar, você pega uma panela e bota logo dois dentes de alho. Se está fraco, isso logo fará bem ao seu coração cansado, que despertará quando o alho começar a fritar no azeite. O vermelho entra na forma de molho de tomate bem fresco, com uma mão de açúcar, que ninguém é de ferro. O açúcar vai ajudá-lo a quebrar a acidez, hoje maior que a do molho. Um pouco de alcaparras, uns filés de sardinha, azeitonas, pimenta. Ao ferver, formam um denso molho alla puttanesca, capaz de despertar todos os seus sentidos e protegê-lo contra todo o mal. Tem gosto de gostos não permitidos na infância, deixa suas bochechas quentes e vermelhas, lembra a Itália e os filmes com romances na Costa Amalfitana.

As coisas coloridas insistem em saltar aos seus olhos, embora você queira ver apenas preto e branco. Os pássaros no fio cantam mais alto que o trânsito, suas contas vão vencer, mas você tem saúde e até um vestido bonito. Está vivo. O sol teima em aparecer mesmo no fim de tarde, invadindo seu quarto. Você colecionou boas lembranças nos últimos anos.

Quando as decepções da vida tomam conta como uma doença indomável, você resiste. E expurga essa dor. Sem a menor ingerência sobre isso.